Publicado em 03 mar 2020

A função maior do ensino da medicina

Redação

A academia deveria preocupar-se em educar o profissional e utilizar a faculdade de modo prudente, guiada por exemplos positivos e dever de foco no bem-estar do próximo, de como enfrentar interesses das empresas farmacêuticas e outras em certas situações.

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Fernando Keutenedjian Mady

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Charles Mady

A finalidade das academias é educar um corpo de médicos apto a prestar serviço na saúde individual e coletiva, bem como auxiliar a sociedade em seu desenvolvimento humano, sem discriminação de qualquer natureza. Para isso, é suficiente a formação técnica e científica do profissional? Conhecer procedimentos específicos e práticos da atividade médica é a função da instituição de ensino superior?



A Constituição da República responde negativamente a essa pergunta. Em suas normas, definiu-se educação não só a atividade de professores voltada à qualificação de profissionais. É função muito maior. Deve, igualmente, perseguir diretrizes em prol do pleno desenvolvimento da pessoa e prepará-la ao exercício da cidadania.

A estrutura orgânica (corpo de docentes) e ética da gestão administrativa, financeira e deliberativa que conduz as faculdades de medicina muito pode ensinar, ser exemplo de moralidade ao futuro profissional e à comunidade. Igualmente, o professor presente à instituição e o aluno interessado são ingredientes esperados nesse contexto, inclusive propiciará a formação do caráter do educando.

Diante disso, o exame – desde o ingresso de alunos e professores dentro da entidade até a qualidade do resultado científico e prático – torna-se relevante ao sistema de saúde. Será que é respeitado o axioma republicano da meritocracia que, segundo a capacidade de cada um, recompensa-se de maneira adequada e proporcional o esforço e o aperfeiçoamento?

Questionamentos desses pontos são importantes em uma futura reforma universitária, pois a responsabilidade do médico é também zelar e trabalhar em busca do desempenho ético da medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da atividade.

Para tanto, o concurso público de provas e títulos é fundamental, de forma a coibir parcialidades e nepotismo na estrutura docente e discente da entidade. Em contrapartida, a autonomia universitária é direito e responsabilidade ética aos que a integram quando exercida a gestão.

Desse modo, salvo situações anormais, interferências de órgãos ou pessoas externas são inadequadas e prejudiciais ao funcionamento universitário saudável e imparcial. Na Coreia do Sul, revolucionou-se a economia e a sociedade dando azo à explosão de crescimento, com base em algumas medidas, dentre as quais, destaca-se a valorização do cargo de professor ao ápice do funcionalismo público. Porém, são impostas a esse agente inúmeras normas legais e morais, proporcionais à excelência do estado alcançado.

Há necessidade de valorização desse profissional no país. Sabe-se que o plano de carreira deve ter bases republicanas, democráticas, meritocráticas e plurais. O aprovado precisa agregar à instituição, não usufruir do sistema para si.

A moralidade, valor obrigatório para todo Poder Público, é previsto nas normas constitucionais. É imposto à realização de qualquer atividade educacional pública que seja norteada pela ética, pluralidade didático-científica e gestão democrática participativa na coisa pública. Por outro lado, o nepotismo, o desrespeito a valores consagrados dentro da coletividade e a ausência de fomento à pesquisa, ao ensino e ao diálogo de diferentes ideias e concepções devem ser criticados.



A resposta à sociedade – que demanda calorosamente por mudança – passa, portanto, também pelo ingresso de professores em faculdades públicas, da carreira desse profissional, da estrutura de classe e da grade curricular. Como conviver com a atual e justa busca pelo lucro e sucesso? O que representa vitória hoje? Dinheiro, fama ou reconhecimento da importância de uma função e da instituição formadora de profissionais médicos?

Todas essas questões são importantes na formação pública de médicos, que deveria ser controlada por provas similares às realizadas aos advogados pela Ordem dos Advogados. O Código de Ética Médica afirma que o médico “exercerá sua profissão com autonomia…”. Ademais, “em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho”. É um direito e uma responsabilidade.

Por essa razão, a academia deveria preocupar-se em educar o profissional e utilizar a faculdade de modo prudente, guiada por exemplos positivos e dever de foco no bem-estar do próximo, de como enfrentar interesses das empresas farmacêuticas e outras em certas situações, e evitar vaidades de um cargo em uma universidade, a competição desleal, ou então a “caça” pela reputação perante o seu meio social.

O direito à saúde e à educação médica estará fadado ao insucesso se não se atentar à sua cura estrutural. O cuidado nessas questões será determinante ao futuro médico em sua maneira de agir, no exercício de sua autonomia e independência, desobrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não a deseje, excetuadas as situações de ausência de outro responsável, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

A dignidade humana é valor caro à sociedade, o que leva a medicina a enfrentar diversas situações moralmente conflituosas, como o aborto, a ortotanásia, a genética, consultas virtuais, dentre outras. Diante disso, o contato direto perante o enfermo, a audição de suas queixas, a compreensão de sua personalidade são extremamente salutares ao tratamento prestado pelo bom terapeuta.

As gestões e governos deveriam meditar sobre essas questões, se porventura tiverem interesse em iniciar um país melhor. Educação não é ideologia. Quando escolas ensinam religiões, sistemas, políticas e concepções sociais em seu currículo, com finalidades ideológicas, criam fanáticos fundamentalistas, que tanto incomodam o mundo atualmente. Assim como se torna meio para se atingir “sucessos” empresariais.



As universidades não devem servir aos interesses de alguns, como infelizmente hoje ocorre com alguma frequência. Devem servir à sociedade, formando bons professores e bons profissionais. Como Thomas Jefferson ressaltava: “Quando um homem assume uma função pública, deve considerar-se propriedade do público”.

Fernando Keutenedjian Mady é pós-graduado em direito público pela Escola Paulista de Direito e Charles Mady é professor do Departamento de Cardiopneumologia da FMUSP.

Fonte: Jornal da USP
Artigo atualizado em 17/03/2020 08:46.

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